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terça-feira, 10 de abril de 2012

Parque Nacional Serra da Capivara sobrevive em meio a incertezas

Apesar de ameaças como a instabilidade do orçamento e ação de caçadores e traficantes, o Parque conta com atrativos científicos, turísticos e guarda alguns dos registros pré-históricos mais importantes do planeta.
Boqueirão da Pedra Furada, Parque Nacional Serra da Capivara.

Todo dia ela faz tudo sempre igual. Acorda cedo e às seis e meia da manhã, a antropóloga Niéde Guidon, aos 79 anos, já está trabalhando. O lugar onde bate ponto é um dos mais bonitos do País, que atrai de ecoturistas a arqueólogos: o Parque Nacional Serra da Capivara, no sudeste do Piauí. Fica lá até o fim da manhã, "vendo se tudo está bem". Uma rotina de dedicação, reconhecida por colegas e admiradores do Brasil e do exterior.

Esta Unidade de Conservação, de 129.140 hectares e perímetro de 214 quilômetros, está a 530 quilômetros de Teresina e ocupa as áreas dos municípios de São Raimundo Nonato (o maior centro urbano local), João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias. Foi criada graças ao trabalho duro de Niéde (hoje gestora do local) e de outros cientistas.

Em 1973, a pesquisadora deixou uma cátedra e uma vida confortável em Paris para se embrenhar no semi-árido do Piauí, aonde chegou para uma missão arqueológica francesa. Cinco anos depois, o governo brasileiro recebia um relatório da equipe, alertando para a riqueza da região, repleta de sítios e pinturas pré-históricas. Em 1979, foi criado o Parque. Porém, a medida não garantiu a proteção do santuário, considerado na época "terra de ninguém", segundo a antropóloga.

Para controlar a situação, em 1986 pesquisadores da cooperação científica entre Brasil e França decidiram criar a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) em São Raimundo Nonato (PI), que elaborou um projeto de desenvolvimento sócio-econômico para a região. Desde 1991, o Parque figura na lista de Patrimônios Culturais da Humanidade da Unesco. No mesmo ano, a pedido do governo brasileiro, Niéde foi cedida pelo governo francês para elaboração e implementação do plano para a proteção do local. E, desde então, ela nunca mais parou.

"O Parque e o Museu são a ressurreição de São Raimundo Nonato. Há 30 anos, não havia luz nem água encanada por lá, não havia nada", relembra a arqueóloga Silvia Maranca, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) que também dedicou grande parte da vida ao trabalho no local. "Muita gente passou a juventude trabalhando aqui", lembra.

Turismo, cultura e desenvolvimento - Muitas são as razões para que Niéde e os pesquisadores não parem o trabalho. A importância ambiental é a primeira que vem à cabeça, já que o Serra da Capivara é o único Parque Nacional situado no domínio morfoclimático das caatingas, abrigando fauna e flora específicas e pouco estudadas. Uma das últimas áreas do semi-árido onde há importante diversidade biológica. "O Aziz [Ab´Saber, geógrafo falecido em março] já dizia: mais importante que a arqueologia é que vocês estão preservando o ecossistema da caatinga, que não existe no mundo inteiro", lembra Silvia.

Mas sua relevância cultural também é de encher os olhos. Em 30 anos, foram descobertos vestígios da presença do primeiro homem americano na região. Uma densa concentração de sítios arqueológicos, a maioria com pinturas e gravuras rupestres, nos quais se encontram vestígios extremamente antigos da presença humana, de até 100 mil anos atrás. Um patrimônio cultural cuja importância é comparável à das cavernas de Lascaux, na França, às pinturas da caverna de Altamira, na Espanha, ou às cavernas da Austrália, visitadas anualmente por milhões de turistas de todo o mundo.

Hoje estão cadastrados por volta de 1.300 sítios, entre os quais mais de mil apresentam pinturas rupestres. Os outros sítios são acampamentos, aldeias de caçadores-coletores, sítios funerários, sítios arqueo-paleontológicos ou aldeias de ceramistas. A professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), Maria Fátima Ribeiro Barbosa, que trabalha com zooarqueologia, ressalta a qualidade e quantidade de pinturas, registros rupestres e vestígios encontrados na região, fundamentais para estudar o povoamento da América. Ela ressalta também os trabalhos com paleontologia e o "acervo muito grande de mega fauna, de grandes mamíferos".

Finalmente, não se pode ignorar o potencial de desenvolvimento econômico da região, motivado especialmente pelos atrativos turísticos (culturais e ecológicos) do Parque. "O Parque gera uma série de empregos importantes para a região: na manutenção, que emprega pessoal temporário, na área de serviços e no turismo. Há uma associação de guias lá, tem gente que vive disso", conta Maria Fátima. Ela lembra que, com a presença da Univasf ao lado, a questão da educação ambiental e patrimonial tem se acentuado nos últimos anos, junto com a inclusão social das pessoas que vivem no entorno do Parque. Cursos como o de artesanato e de confecção de doces, por exemplo, já foram oferecidos.

Outro ponto a destacar é a criação do Museu do Homem Americano, considerado um dos mais modernos do Brasil. Silvia Maranca lembra que há alguns laboratórios de pesquisa da Fumdham que são melhores que os da USP e sua moderna biblioteca, para a qual os pesquisadores contribuem com publicações e obras doadas, é a única num raio de 300 quilômetros. "Além disso, ainda há a beleza do Parque, que não se pode explicar em palavras. É de ficar em êxtase", conta Silvia.

Orçamento instável - Contudo, Niéde está cansada. Razões não lhe faltam. A principal é não ter um orçamento fixo. "Dizem que o Parque Nacional Serra da Capivara é um parque de primeiro mundo e que por isso é o que menos precisa de verba. É uma situação calamitosa", alerta Silvia Maranca.

Equipe da SPA em visita ao Parque, julho de 2011.
Thomas, Dra. Niède Guidon, Dennis Mota e Juvandi Santos

Ao longo dos últimos anos, o Parque já recebeu aportes do Fundo Nacional da Cultura (Ministério da Cultura), patrocínios pela Lei Rouanet (de empresas como Petrobras e Eletrobras) e convênios e compensações ambientais do Ibama/Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Porém, nenhum desses recursos ocorre com regularidade. Para 2012, estão previstos um novo convênio com o ICMBio, que traria R$ 2,4 milhões nos próximos dois anos, e por volta de R$ 300 mil provenientes de um patrocínio da Petrobras por meio da Lei Rouanet. Entretanto, de acordo com Niéde, "é uma burocracia imensa".

"A gente fez um termo de parceria 2010/2011. O processo tinha algumas pendências de prestação de contas e agora em janeiro conseguimos um parecer do setor jurídico de que poderíamos aditivar o termo. Fizemos um plano de trabalho que já foi aprovado. Os recursos já existem", conta Eugênia Maria Vitória de Medeiros, da Coordenação Regional do ICMBio em Parnaíba (PI), que acredita que em abril o dinheiro terá saído.

Niéde relata que só a folha de pagamento consome de R$ 120 mil, sem contar os gastos de conservação, como a manutenção dos 350 quilômetros de estradas dentro da área. Silvia Maranca e Niéde estimam que são necessários R$ 380 mil mensais para despesas como a manutenção do Parque e de sua infraestrutura, proteção da fauna e manutenção da limpeza dos sítios de pinturas rupestres, de modo a evitar a propagação de incêndios e a destruição das pinturas.

A pesquisadora conta que a Fundham e o Parque chegaram a ter 270 funcionários. Com as demissões por falta de dinheiro, hoje há por volta de 130. "Alguns continuam trabalhando mesmo sem receber em dia. Fazem isso por amor e também porque não têm outro trabalho", relata Silvia Maranca. "Das 28 guaritas do parque, só estamos com 12 delas funcionando. As outras estão fechadas por falta de recursos", detalha Niéde. Com guaritas fechadas, é possível receber visitas indesejadas, como as de caçadores e traficantes que usam o Parque como rota e até para guardar drogas. O caçador, por exemplo, não ameaça só a fauna, mas, como lembra Silvia Maranca, também a flora e os sítios com sua depredação.

Eugênia lembra que o pedido de afastamento do presidente do ICMBio Rômulo Mello, substituído no fim de março por Roberto Vizentin, também atrasou o processo. "São R$ 2,4 milhões para dois anos. A perspectiva é que esse dinheiro saia agora e o nosso plano de trabalho é para a manutenção da unidade, da infraestrutura do Parque, que é parte de uso público. Isso envolve a contratação de pessoal para as guaritas e aquisição de equipamentos também. O Parque está precisando de trator e de carro-pipa, por exemplo", detalha, lembrando que existe a perspectiva de se criar um fundo para o Parque, nos moldes da reserva biológica de Atol das Rocas. O fundo envolveria outras instituições, empresas e recursos internacionais, mas precisa que o Ministério do Meio Ambiente mande o Projeto de Lei para a Câmara.

Pesquisas e carta ao Governo - Se o grande problema é garantir recursos para a manutenção, pelo menos não há queixas quando o assunto é pesquisa. Niéde elogia o auxílio de entidades como o CNPq, a Finep e o MCTI, "das quais sempre recebemos recursos". O Parque tem uma população flutuante de cerca de 60 pesquisadores de diversas universidades brasileiras e estrangeiras, além de uma missão francesa anual. Alguns inclusive moram lá, como é o caso dos pesquisadores da Univasf, universidade que tem curso de arqueologia e de ciências da natureza.

"O Parque tem belezas cênicas fantásticas, que para o turismo é importante. Mas a gente também tem a perspectiva de um turismo arqueológico, um turismo de base científica. E tem a questão do bioma da caatinga, o único bioma exclusivamente brasileiro, mais ameaçado que a Mata Atlântica e que a Amazônia", lembra Eugênia Medeiros.

A pesquisadora Maria Fátima, que foi gestora do Parque em 2006 pelo Ibama, não acredita que Niéde desista do projeto. "Se não fosse por ela, não haveria o Parque. Apesar de estar cansada, ela é apaixonada por aquilo. Vibra com cada descoberta, com cada trabalho científico bom que sai; acho que talvez fisicamente ela esteja cansada, mas intelectualmente ela é muito ativa", conta. "O Parque é sempre um desafio e acho que ele pode ser um excelente exemplo de gestão compartilhada, que no caso é da Fundham e do ICMBio, para os demais parques", completa Maria Fátima.

A última ação efetiva de Niéde foi enviar uma carta ao senador Eduardo Suplicy (PT-SP) na qual a pesquisadora defende a intervenção do Governo Federal em prol da conservação e manutenção do Parque. Suplicy leu a carta no Plenário no dia 15 de março, mas o ato não provocou grandes mudanças ainda. "Me disseram que minha entrevista com a presidente [Dilma Rousseff] foi protocolada e não tem data. Realmente, seria algo que modificaria o Piauí inteiro", conta Niéde, que, enquanto isso, continua esperando, todas as manhãs.

(Clarissa Vasconcellos - publicado no JC-Email 4471, de 05 de abril de 2012, Jornal da Ciência; Fotos SPA)

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